Sobre o livro SABER ESPERAR, de Cristina
Brandão Lavender
Na página 21
do livro, lê-se:
“É preciso
relatar o passado/Viver o presente/Predizer o futuro”
Hipócrates
Por isso, vou até ao passado.
Nasci em Braga, numa família portuguesa (por
parte de pai), profundamente enraizada na sua terra. Era uma típica família portuguesa da época,
abastada, muito respeitada na cidade, em que os homens mandavam e as mulheres
obedeciam. Meus avós, que viviam na
Quinta da Calçada, na subida para o Bom Jesus do Monte, num casarão belíssimo
cercado de jardins onde a comida era deliciosa e sempre havia lugar para mais
um à mesa, tiveram um filho homem (meu pai) e três filhas mulheres. Minhas tias
casaram bem, por amor e com bons partidos. Meu pai apaixonou-se por uma brasileira,
linda e muito mimada, que tocava piano e violoncelo, filha única de um intelectual
brasileiro e de uma poetisa, e que depois do casamento, não gostou nada da
vidinha que se levava em Braga. Eu e meu irmão tivemos uma infância
maravilhosa, adorávamos a Calçada e crescemos brincando com os primos: três
meninos e oito meninas.
A vida foi passando, coisas se modificando,
nós todos crescendo. Meu primo Fernando – o mais velho dos rapazes, bonito e
muito bom - começou a namorar a Milena,
que estudava no Colégio Dublin, como eu. Eu ainda no primário, enquanto ela Sahiraterminava
o curso. E passei a ser o “correio”
entre eles, levando e trazendo as cartinhas de amor. A Milena era bonita, muito
inteligente, tinha um irmão e era filha de um senhor abastado que tinha terras
e negócios em S.Tomé e Príncipe, e uma quinta nos arredores de Vila Nova de
Famalicão, a residência da família em Portugal. Os dois casaram e lembro-me bem
da festa realizada na quinta, pois foi o primeiro casamento da família a que
assisti. E nesse dia, vi pela primeira e única vez o pai da noiva, o senhor
Brandão, um senhor sério e muito bem educado (que se calhar, até é descendente
de algum antepassado meu, pois os Brandões do lado do meu avô, Heitor Esteves
Brandão, são oriundos dessa região).
Desde pequena eu lia muito e escrevia, incentivada
pelos meus avós maternos que viviam com a gente, pois não quiseram afastar-se
da filha única. E enquanto na nossa casinha de Tenões havia um piano e muitos
livros, na Calçada a vida era alegre, comia-se e bebia-se maravilhosamente bem,
dançava-se ao som de um gramofone, rezava-se muito na capelinha, mas não havia
estantes nem livros.
Mais anos se passaram, eu casei com um
brasileiro e fui viver no Rio de Janeiro, onde os meus filhos nasceram.
Entretanto, todos os meus outros primos e primas casaram também e ficaram a
viver em Portugal com os seus filhos exceto o Fernando e a Milena, que foram
viver em S.Tomé e Príncipe a chamado do pai dela. E lá nasceu a filha caçula
deles – a Nicha – que eu só vim a conhecer muitos anos mais tarde, quando
voltei a viver em Portugal. Eles também foram obrigados a regressar, como
milhares de outros portugueses, quando começaram os movimentos e a violência
que antecedeu a independência das colônias, e radicaram-se em Braga. Nessa
época da minha vida eu já trabalhava há muitos anos como jornalista,
colaborando em jornais e revistas brasileiras e portuguesas e tinha livros
publicados. Um dia, a prima Milena mostra-me um caderno e diz-me “Lourdes, a
Nicha escreve muito... por favor, lê e dá a tua opinião.” Eu li e fiquei
impressionada com o que aquela adolescente já escrevia. Não me esqueci nunca
das minhas palavras “ essa menina vai longe!”
E ela foi.
O presente
De novo estamos separadas por um
oceano. Não revi ainda a
Cristina/mulher/mãe e avó (para mim sempre a Nicha), mas durante os últimos
meses, via Internet, acompanhei as crónicas que ela escrevia para um jornal de
Braga e os preparativos para o lançamento do seu livro de estreia, primeiro na
ilha verde onde nasceu, S.Tomé e Príncipe, depois em Braga, onde vive. Estava
curiosa, mas o exemplar autografado do SABER ESPERAR que mandou para o Rio de
Janeiro, só chegou ontem à minha casa. E eu li-o de um fôlego, varando a
madrugada, esse “livro desesperado, que mexe nas feridas, que volta a mexer nas
feridas – alternando entre crueza e carinho, brutalidade e ternura, tesão e
cumplicidade”, como muito bem diz no Prefácio, Pedro Chagas Freitas.
SABER ESPERAR é um livro que nos perturba e
tira o sono. A procura do verdadeiro eu da autora (haverá só um verdadeiro eu,
ou vários verdadeiros eus que se degladiam sempre?), o dilacerar da sua alma dividida e sofrida é tão profundo o doloroso, que nos faz sofrer
também. Cristina Brandão Lavender
(ou o seu alter-ego, Sahira) mergulha fundo no passado cheio de mistérios da
sua família, que marcou profundamente a sua infância e juventude. Ela procura respostas, ela quer desvendar
segredos, ela quer saber e tem medo, porque cada destino, cada vida, arrasta
atrás de si outras vidas, inocentes, que muitas vezes, sofrem e pagam por erros
que desconhecem.
Como todos os livros de estreia, SABER
ESPERAR tem muito de pessoal. É uma
catarse que quase levou a autora à loucura. Em seu anseio, nessas perguntas sem
respostas “ quem falar nisso morre”
(Massacre do Batepá, 3/fevereiro/1953), ela caminha pela vida pisando em
espinhos, em cacos de vidro que ferem e doem. E escreve... e leva-nos com ela
nessa viagem alucinante.
Essa agitação incontrolável, essa procura do
desconhecido que esgotam a autora levam –nos também, página após página, a
sofrer com ela. E temos de parar para respirar. Para procurar paz- a paz que
C.B.L não consegue encontrar. E por isso, escreve... usando não a mão sinistra,
a verdadeira, mas a outra. Ela escrevia
da direita para a esquerda, mas apanhou multas reguadas para aprender a
escrever ”direito”, como todo o mundo... – e mesmo assim, violentada desde os bancos da
escola, ela consegue transmitir ao papel, em negros caracteres, a sua agitação,
o seu desassossego. Como só os bons escritores conseguem.
Duas palavras diferenciam um verdadeiro
escritor de um escrevinhador: paixão e inquietação. E isso C.B.L. tem de sobra. Neste seu
primeiro livro nota-se a presença ostensiva do irracional da alma em relação à
vida real. É um rasgar, um pôr a nu as suas entranhas sem pejo, que assusta. É
uma luta permanente entre o ter e o ser. A procura desesperada pelo que podia e
devia ser. Mas não é. A não aceitação da
realidade. E nessa agitação angustiante, encontramos em algumas páginas uns
lampejos de paz. Raros. Ela fala da
beleza das camélias. Dos ursinhos da infância que ainda enfeitam a sua
cama. Diz que ama o silêncio das matas.
O pôr do sol numa tarde outonal.
Predizer o futuro
Quem pode predizer o futuro?
Não eu...
mas depois de ler o SABER
ESPERAR, vi que as palavras que disse há muitos anos atrás à minha prima Milena
sobre a sua filha, Nicha “ essa menina vai longe!”, se concretizaram. Nasceu uma escritora. Só desejo que ela continue a escrever outros
livros. Mais livros. Quem sabe um
romance passado entre Portugal e a ilha dos seus amores, S.Tomé e Príncipe? Que
ela encontre as respostas que procura. Que não se sinta enlameada pela culpa de
não poder ficar parada. Que desvende os
segredos que a asfixiam. Mas do fundo do meu coração, peço-lhe que domine esse
impulso doentio de autodestruição – que só os grandes escritores têm – mas que
me dá medo.
Um beijo e parabéns, querida Nicha.
Maria de Lourdes Brandão
( escritora e poetisa)